A violência e o cotidiano do PSF

Bullying

A questão do bullying deixou, há algum tempo, de fazer parte das preocupações unicamente do meio escolar. Inicialmente definida como uma problemática social voltada para a disputa entre adolescentes, o bullying se transformou em objeto de pesquisa e tratamento no campo da saúde. O conceito foi expandido e, nos dias de hoje, praticamente se transformou em sinônimo de assédio moral. Assim, facilmente identificamos alguns pontos de ação para o PSF, sempre próximos às comunidades em seu cotidiano.

O bullying pode ser entendido, derivado do conceito de estresse, como a agressão intencional tendo como meta a humilhação e a submissão de outro supostamente mais frágil. No campo da saúde, o bullying se reflete em faltas e abandonos escolares, nos casos de crianças, ou, no aspecto do trabalho, de faltas constantes e até a perda do emprego. Além disso, pode levar a transtornos frequentes, como quadros de ansiedade, depressão e o TEPT.

Violência doméstica

A violência doméstica se transformou em uma das questões mais examinadas pela saúde, especialmente por sua abrangência em todo o território brasileiro, tradicionalmente uma sociedade patriarcal e conservadora. As mulheres são as maiores vítimas desse tipo extremamente comum de violência.

Para a delimitação do conceito de vítima na saúde, sugerimos o texto “Corpo, violência e saúde: a produção da vítima”, de Cynthia A. Sarti, na Revista Sexualidad, Salud y Sociedad, n. 1, 2009, p. 89-103. www.sexualidadsaludysociedad.org.

Para profissionais do PSF, ainda são bastante comuns histórias de mulheres agredidas dentro de seus próprios domicílios, geralmente pelo companheiro, o que provavelmente resulta em lares desfeitos e/ou transtornos de saúde. No campo da saúde, os quadros mais comuns decorrentes da violência doméstica são os transtornos de ansiedade, a depressão e o TEPT. Assim como nos casos de bullying, a violência insidiosa e estressante pode cronificar quadros e modificar todo um projeto de vida que passa a ser regido pelo medo.

No campo da violência doméstica, devemos lembrar também o problema da negligência precoce, ou seja, o abandono de crianças em fase de crescimento dentro de seus próprios lares pelos próprios familiares. Ainda há a questão do abuso sexual. Com a grande mudança de padrões familiares, afrouxam-se os laços sociais familiares mais tradicionais. As crianças convivem cada vez mais com estranhos que passam a ter funções paternais ou maternais. Entretanto o abuso sexual não é uma exclusividade desse grupo, e a cada dia somos surpreendidos por notícias de pais que mantiveram filhas em cárcere privado, forçavam-nas a ter relações sexuais e até conceberam filhos com elas. Trata-se de um fenômeno mundial.

O maior problema para a constatação da violência doméstica é sua apresentação dissimulada. Crianças agredidas são levadas aos prontos-socorros como se tivessem passado por acidentes domésticos. O mesmo ocorre com mulheres espancadas, que pouco procuram ajuda e são surpreendidas pelos vizinhos e familiares com hematomas, muitas vezes no rosto, mas que geralmente protegem maridos (ou filhos que também são agressores comuns), perpetuando o ciclo da violência.

Transtorno de conduta

Cena do filme Garota, interrompida, de 2000

Cena do filme Garota, interrompida, de 2000. Em destaque a personagem interpretada por Angelina Jolie, uma jovem cujo transtorno de conduta é a regra.
Fonte: www.sonypictures.com

Anteriormente conhecido como transtorno de deliquência, o transtorno de conduta passou de uma questão moral ou comportamental para um problema de saúde. Não é visto mais apenas por sua ligação ao delito, ao crime. Mais do que travessuras em série, da gravidade dos atos, o transtorno de conduta é reconhecido pela ausência de crítica do agressor, pela incapacidade do agressor de perceber que seu comportamento viola a liberdade do outro. São frequentes naquele que provoca a violência demonstrações de frieza, irritabilidade, mudanças súbitas de humor, intolerância às mínimas frustrações e a atribuição da responsabilidade ao agredido pelo próprio abuso, como se este o merecesse.

Embora a preocupação do profissional de saúde seja na maioria das vezes com o abusado, devemos observar que muitos agressores foram eles mesmos os agredidos em épocas anteriores. Vários trabalhos recentes mostram que a origem do ato de violência possa ter sido a marca de um passado em que o abusador era a vítima. Isso é muito mais comum do que se pensa nas crianças e adolescentes com transtorno de conduta. E mais: tanto para agressor como para agredido, a possibilidade de essas vivências levarem a um consumo de drogas, ao porte de armas e ao envolvimento em crimes é muito alta.

Como detectar?

Se a violência passou a ser uma preocupação da saúde em seu aspecto preventivo e curativo, qual seria o protocolo a ser seguido pelo profissional da ESF que trabalha com uma população de risco?

No campo de ação da atenção primária, enumeramos alguns aspectos da violência que podem alertar o profissional: além dos vários tipos de agressão que envolvem a violência urbana (assaltos, sequestros-relâmpago que atualmente ocorrem em qualquer classe social, moradia em lugar violento), temos eventos que durante muito tempo foram pouco observados pela saúde: assédio moral (bullying, mais especificamente entre jovens), assédio sexual e especificamente a violência sexual.

Cada um desses aspectos pode ser observado diretamente (quando familiares ou os próprios usuários acometidos contam) ou indiretamente. Como a questão do impacto da violência sobre o psiquismo é um tema tabu, o profissional do PSF deve estar atento para alguns sinais indiretos:

  • Há sinais evidentes de agressão física, geralmente amenizada pelo doente (especialmente mulheres) ou pela família (olho roxo, equimoses no rosto, fraturas de membros, cortes, marcas de queimaduras, especialmente de cigarros sobre a pele);
  • Excesso de queixas somáticas sem relação evidente com patologias, mas que levam a pedidos de licença-médica;
  • Vergonha ao serem descobertos como pessoas que passaram pela violência. Mesmo que admitam, esses indivíduos podem apresentar extrema dificuldade em relatar o que passaram. Se a questão envolve crianças, isso se torna ainda mais evidente. Eventos recentes, mesmo que muito impactantes, são de mais fácil relato. A violência constante faz que o indivíduo se perceba cúmplice, responsabilize-se pelo ato, especialmente nos casos de bullying contra jovens e violência sexual contra mulheres e crianças;
  • Em crianças, são comuns idas frequentes no pronto-socorro com histórias inconvincentes de quedas e fraturas, que podem ser decorrentes de agressão física;
  • É muito importante lembrar: os eventos violentos mais crônicos são os mais difíceis de detectar, pois o indivíduo traça e vive em uma espécie de mundo paralelo, em que a agressão vira tabu.
  • No caso de violência doméstica, algumas situações examinadas ou questionadas pelo profissional do PSF podem ser úteis para a direção da investigação como um possível caso de saúde. O companheiro é permanentemente implicante (vestes, maquiagem, ciúmes)? Há sinais de agressão (verbal, moral ou física) frequentes? Priva dos sonhos de melhorar na vida? Obriga em suas vontades sexuais?

Implicações para a prática clínica

O profissional deve ter bastante cuidado no acolhimento inicial: pacientes encontram-se fragilizados, desorganizados e com o senso de confiança muito prejudicado.

A relação estabelecida com o paciente deve ser de suporte e empática.

Profissional de saúde pode ser visto como uma figura de apego temporária, com quem paciente restabelecerá a capacidade de confiança no outro e poderá dividir sua história e seus sentimentos.

Como abordar o evento traumático ?

Esta deve ser sempre uma questão a ser abordada com muita cautela, pois muitos pacientes não conseguem falar sobre o ocorrido, outros falam repetidamente sobre o evento, mas trata-se de um falar que pode fazer com que ele se sinta mal e muito exposto, por isso é fundamental que o profissional possa ir conversando com o paciente e fazendo com que ele se perceba, suas reações, seus incômodos enquanto fala, para que possa ter a liberdade de interromper um assunto que pode estar sendo muito doloroso para ele.

Um exemplo de como abordaríamos Luana numa primeira consulta:

“Luana, eu sei pelo seu prontuário que você passou por uma situação de violência, gostaria de saber como isso vem te afetando e como te afetou. Peço que só me conte aquilo que você se sentir á vontade em falar e caso eu faça alguma pergunta ou algum comentário que te incomode peço que você me diga que está incomodada ou que não quer responder, pode ser?”

Cuidando de quem cuida

Devido aos sintomas de desconfiança e isolamento, os pacientes com TEPT podem apresentar dificuldade em estabelecer vínculos de confiança, por isso o estabelecimento de uma aliança terapêutica e de um relacionamento de confiança pode ser um desafio. Tal dificuldade pode levar o profissional a vivenciar sentimentos de solidão e inutilidade.

Por outro lado, são pacientes que, por estarem muito fragilizados, podem projetar no profissional a figura do salvador, que poderá ajudá-lo a sair da crise. Essa projeção inicial pode facilitar o desenvolvimento de uma relação de confiança e de um vínculo com o paciente, no entanto deve ser questionada, pois é necessário que, com o passar do tempo o paciente consiga romper o ciclo de idealização do profissional e desvalorização de si, para que possa reconhecer em si mesmo recursos e sinais para sair da crise em que se encontra.

É comum que o terapeuta vivencie sentimentos de culpa por não ter passado pela situação de agressão que seus pacientes vivenciaram.

A traumatização vicária, descrita como a experiência, por parte de profissionais que atendem vitimas de traumas, de vivenciar reações psicológicas intensas e dolorosas, estados de medo e desesperança intensos. O contato freqüente do profissional com os relatos traumáticos de seus pacientes pode fazer com que desenvolvam um profundo senso de desesperança frente ao mundo, além de raiva intensa dos agressores. Esse senso de desesperança e impotência pode levar o profissional a perder a crença na sua capacidade de ajudar seu paciente, bem como não conseguir perceber os potencias destes para sair da crise.

Outro fenômeno comum é a traumatização secundária, definida como uma súbita reação por parte do terapeuta que esta em contato com vitimas de trauma.Tal processo foi descrito por Figley.

Por fim, é importante ressaltar a importância do trabalho em equipe no atendimento a esses pacientes, esta funciona como importante suporte e espaço para que o terapeuta possa elaborar os aspectos mais dolorosos desencadeados em seus atendimentos.

Aspectos Legais

É importante comentar algumas das leis que vieram proteger as mulheres em situações de violência doméstica e sexual, facilitando e norteando os serviços de saúde em sua atuação preventiva e terapêutica não só na área médica, mas também nos âmbitos social, psíquico e de exercício de cidadania.

Algumas leis, apesar de já existirem, há muitos anos continuam sendo “esquecidas” ou mal interpretadas, insistindo dessa maneira em negar os devidos direitos às mulheres. Entre os aspectos bioéticos que trazem dúvidas aos profissionais de saúde, temos os relacionados às situações de aborto previsto em lei, à obrigação dos serviços de saúde em oferecer os serviços de direito às mulheres, ao compromisso dos órgãos de saúde em desenvolver esses serviços, aos limites da objeção de consciência alegadas pelos profissionais de saúde, às obrigações e limites de denúncias e notificações compulsórias, aos consentimentos esclarecidos e informados e a algumas leis que devem ser conhecidas pelos profissionais de saúde para os devidos encaminhamentos, esclarecimentos e até aconselhamentos às vitimas de violência num sentido amplo, particularmente às mulheres.

Lei do Aborto

Iniciaremos com o Decreto-Lei no 2848 do Código Penal Brasileiro, datada de 1940, que no seu artigo 128 diz:

  1. Se não há outra maneira de salvar a vida da gestante;
  2. Se a gravidez é resultado de estupro e o aborto é autorizado pela gestante ou seu representante legal.

Essa lei ainda não é oferecida universalmente às pacientes que dela necessitam. Na realidade, foi no final dos anos 1980 quando surgiram as primeiras leis regulamentando, no Rio de Janeiro e em São Paulo, a obrigação de os hospitais municipais oferecerem a interrupção da gestação nas situações de juricidade existentes no Código Penal Brasileiro. Apesar disso, já são 22 anos de luta e ainda não temos esse serviço universalizado, como é proposta do nosso Sistema Único de Saúde.

Vale lembrar que essas dificuldades de acesso aos seus direitos , nos casos de estupro, levam essas mulheres a procurar situações de risco para realizar seus abortos, resultando numa enorme perda de vidas desnecessárias.

Objeção de consciência

O Novo Código de Ética Médica, aprovado pela Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) 1.931/2009 em 17 de setembro de 2009 e publicado no Diário Oficial da União (DOU) em 24 de setembro de 2009, no Capítulo II, relativo aos “Direitos dos Médicos”, diz que “é direito do médico [...] recusar-se a realizar atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência (artigo IX)”. Esse artigo permite aos médicos eximirem-se de determinados atos desde que sejam contra seus princípios morais e religiosos, embora amparados pela lei. Dessa maneira, pode um médico deixar de realizar um aborto, mesmo que seja legal, se tal ato for contra seus princípios. No entanto, deve esse médico, obrigatoriamente, orientar e encaminhar a paciente a outro que lhe ofereça o atendimento de direito, facilitando seu acesso em tempo hábil e oportuno para a realização do procedimento. Tem sido comum alguns colegas eximirem-se de atender e orientar essas mulheres, alegando que não concordam com suas opções. Outro aspecto é que, nos casos de risco de vida à gestante, não é reconhecido o direito de objeção de consciência, se não houver outro profissional treinado para a realização do procedimento em questão.

No que se refere à contracepção de emergência, o Novo Código de Ética Médica é bem claro quando não aceita justificativa para objeção de consciência, uma vez que essa medicação não é abortiva.

Crimes contra a dignidade sexual

No final de 2009, houve uma importante mudança nas leis que definem os crimes sexuais. A Lei no 12.015, de 7 de agosto de 2009, alterou o Decreto-Lei no 2848 de 7 de dezembro de 1940 e dispõe sobre os crimes hediondos nos termos do inciso XLIII do artigo 5o da Constituição Federal, revogando a Lei no 2252 de 1o de julho de 1954, que tratava de corrupção de menores.

O Título VI da Parte Especial do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, passa a vigorar com as seguintes alterações:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848.htm#titulovi

Na prática, esta lei muda a definição de estupro conforme o Artigo 213 : “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. Essa definição então suprime a figura do atentado violento ao pudor, considerando qualquer forma de agressão sexual como estupro (coito vaginal, anal, oral, interfêmures, manipulações etc.). Também define estupro de vulnerável quando essa forma de violência é aplicada a incapazes e menores de 18 e maiores de 14 anos. Nas situações abaixo de 14 anos, mesmo que consentida, a relação sexual é considerada estupro presumido de vulnerável, não necessitando haver violência nem constrangimento para esse ato. Existe um mecanismo de acumulação de penas para essas situações.

Outro aspecto importante desta lei é que, embora respeite o direito à representação da ação judicial contra o agressor em maiores de 18 anos, em situações de estupro de vulnerável, a ação penal é incondicionada, ou seja, é aberta automaticamente mesmo que contra a vontade dos responsáveis legais.

Outras situações são consideradas nesta lei, como violação sexual mediante fraude, assédio sexual, exploração sexual, tráfico internacional de pessoas, rufianismo (exploração sexual por terceiros), exploração de menores, entre outras. Também aqui houve um processo cumulativo de penas, conforme as situações vão se configurando. Trata-se, pois, de um avanço considerável na lei que protege os direitos sexuais e reprodutivos das pessoas, particularmente das mulheres.

Notificação compulsória

Em casos de suspeita ou confirmação de violência contra crianças e adolescentes, a notificação deve ser obrigatória e dirigida aos Conselhos Tutelares e autoridades competentes (Delegacias de Proteção da Criança e do Adolescente e Ministério Público da localidade), de acordo com o Artigo 13 da Lei no 8069/1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente. Esta ficha (anexo IV) atende ao Decreto-Lei no 5.099 de 03/06/2004, o qual regulamenta a Lei no 10.778/2003, que institui o serviço de notificação compulsória de violência contra a mulher, e o Artigo 19 da Lei no 10.741/2003, que prevê que os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra idosos são de notificação obrigatória.

Todo o parágrafo acima faz parte do cabeçalho da ficha de notificação compulsória, que de acordo com as leis mencionadas, devem ser realizadas quando qualquer serviço de saúde atende um(a) paciente em situação de vulnerabilidade. É importante notar que, nas situações contra crianças e adolescentes, além da notificação compulsória, deve o serviço comunicar oficialmente o Conselho Tutelar e/ou a Delegacia de Proteção à Criança e Adolescente. No caso de violência contra o idoso, sugere-se que o Ministério Público seja acionado, uma vez que não existe um órgão oficial prevendo essa proteção aos idosos na maioria dos municípios (anexo II).

Lei Maria da Penha

Em 7 de agosto de 2006, o presidente do Brasil sancionou a Lei no 11.340, conhecida como “Lei Maria da Penha”. Entre as várias mudanças promovidas por essa lei, está o aumento no rigor das punições das agressões contra a mulher quando ocorridas no âmbito doméstico ou familiar. Essa lei foi criada para proteger os direitos da mulher, além de impedir que os homens assassinem ou batam nas suas esposas. A lei alterou o Código Penal Brasileiro e possibilitou que agressores de mulheres no âmbito doméstico ou familiar sejam presos em flagrante ou tenham sua prisão preventiva decretada. Outro aspecto importante é que esses agressores também não poderão mais ser punidos com penas alternativas, como pagamento de cestas básicas. A legislação também aumenta o tempo máximo de detenção de um para três anos e ainda prevê medidas que vão desde a saída do agressor do domicílio à proibição de sua aproximação da mulher agredida.