A violência e a Saúde

Do ponto de vista físico ou corporal, o dano de uma lesão por agressão é evidente, visível, mas talvez a grande novidade dos últimos 30 anos no campo da saúde, especialmente na saúde mental, seja o impacto patológico da violência sobre o psiquismo.

Gostaríamos de trazer uma ilustração de dois casos clínicos que irão nos ajudar na compreensão dos pacientes vítimas de violência,nos diferentes tipos de reações das vitimas de violência e nas estratégias utilizadas para o atendimento.

Luana tem vinte anos e saiu à noite para balada com sua amiga Claudia, quando estavam voltando para casa, ambas testemunharam um assassinato na frente de um bar onde estavam passando, dois rapazes de boné desceram de uma moto e deram dois tiros em um outro que estava andando sozinho. Este logo caiu no chão ,os dois assassinos subiram na sua moto e fugiram. Sem saber como reagir e com medo de serem vistas as amigas correram e não conseguiram prestar ajudar ao garoto baleado. Na manhã seguinte, souberam que ele havia morrido. Após este evento, Luana passou a ter insônia, não conseguia dormir, acordava no meio da noite com pesadelos, e passou a ter medo de sair de casa. Claudia também teve reações parecidas, sentiu-se irritada,com muita raiva ,taquicardia, tinha a sensação de estar em alerta o tempo todo. No entanto com o passar dos dias, Claudia percebeu que essas reações foram diminuindo de intensidade, ela voltou a dormir melhor, conseguiu contar para as pessoas sobre o que havia acontecido, continuou trabalhando e retomou sua rotina. Após alguns meses, Claudia conseguiu tirar um certo aprendizado desta vivência, tornando-se uma pessoa mais cautelosa quando saía de casa sozinha, além disso, também teve uma sensação de que as coisas passaram a ser diferentes ,por ter tido uma vivência de quase morte, passou a rever seus projetos de vida, dar valor a coisas que antes não achava tão importantes. No entanto, para Luana as coisas foram diferentes, ela passou a ter medo de sair de casa sozinha, pois convivia com a certeza de que seria reconhecida e que os assassinos viriam atrás dela, (apesar de ter ficado sabendo que eles também foram assassinados logo em seguida por membros de outra facção criminosa) passou a se isolar, não conseguia conversar com as pessoas nem mesmo com Claudia. Frequentemente era invadida pelas cenas que vivenciou e tinha a sensação de que aquilo tudo estava acontecendo novamente. Luana passou a evitar falar no ocorrido e percebia que precisava fazer um esforço muito grande para não pensar no que aconteceu, passou a evitar qualquer situação que lembrasse o trauma. Não assistia mais noticiários, não saia de casa, sempre que via alguma pessoa de boné tinha certeza que este eram os assassinos. Por conta desses sintomas Luana não mais conseguia sair de casa sozinha e por isso acabou abandonando seu emprego.

Esta história ilustra dois casos que vivenciaram uma situação traumática e duas possíveis saídas após um evento traumático, a primeira de Claudia, que teve o que chamamos de reação aguda ao estresse, uma reação normal a uma vivência traumática, que com duração de algumas horas a alguns dias e que caracteriza-se pela diminuição da intensidade dos sintomas com o passar dos dias. Claudia também teve o que chamamos de uma resposta resiliente, além de não adoecer ela superou esta vivência podendo tirar algo positivo desta.

Portanto, o tema violência faz parte da preocupação da atenção primária (como os da Estratégia Saúde da Família) como elemento epidemiológico, preventivo e da prática clínica. Entretanto, especificamente no campo da saúde, qual é o poder da violência em trazer dano?

O caso de Luana exemplifica uma situação de adoecimento psíquico, ela desenvolveu sintomas que caracterizam o Transtorno de Estresse Agudo, que seguiu para um caso de TEPT. Trata-se de uma síndrome que acomete cerca de 15 a 20% das pessoas que passam por um evento traumática, em que sua vida ou a vida de outra pessoa é ameaçada. Estes eventos traumáticos incluem vivências como: entativas de homicídio, perda de pessoas próximas por homicídio, testemunho de homicídios, sequestros, violência sexual, física entre outros.

Podemos dividir os casos de vítimas de violência em dois grupos, de acordo com o tempo de trauma:

1- Trauma recente

Em alguns casos é possível que o profissional de saúde se encontre frente a uma pessoa que passou por uma situação de violência extremamente recente, de dias a horas após o trauma. Assim, é importante que ele esteja instrumentalizado para saber como abordar este paciente.

1 a- Reação aguda ao estresse

A reação aguda ao estresse é definida como um transtorno transitório, que acomete indivíduos que passaram por alguma situação de estresse psíquico excepcional, e que desaparece em algumas horas ou em alguns dias. A sintomatologia é mista e variável e comporta de início um estado de aturdimento caracterizado por um certo estreitamento do campo da consciência, dificuldade de manter a atenção, ou de integrar estímulos, junto com uma desorientação. Pode ser acompanhado por um distanciamento do ambiente, ou de agitação com hiperatividade, taquicardia, transpiração e ondas de calor. Em geral esses sintomas se manifestam nos minutos seguintes ao evento estressante e desaparecem no espaço de dois a três dias, frequentemente em algumas horas.

Este foi o caso citado anteriormente de Claudia, ela apresentou esses sintomas que despareceram após poucos dias.

Após uma situação de catástrofe, trauma, violência coletiva muitas pessoas precisarão de cuidados específicos enquanto outras poderão se beneficiar de apenas assistência prática, conforto humano e compaixão.

O objetivo destes primeiros atendimentos é ajudar a pessoa a mobilizar suas próprias capacidades e recursos para se recuperar e reconstruir sua vida.

O foco deve ser nas primeiras necessidades básicas, tais como: moradia, acesso a alimentação, re- estabelecimento de contato com familiares, conforto e criação e fortalecimento de vínculos de suporte.

Alguns fatores são considerados fatores de proteção para esse tipo de situação:

  1. Sentimentos de segurança, calma, esperança e de conexão com as outras pessoas
  2. Ter acesso a suporte social, emocional e físico
  3. Possibilidade de ajudar a si mesmo, como indivíduo e comunidade

“Psychological First Aids” , foi a sigla designada para este primeiro tipo de atendimento, lembrando que estes primeiros atendimentos não necessariamente são feitos por psicólogos, e por isso mesmo é de extrema importância que qualquer profissional de saúde tenha informações sobre como proceder nestes primeiros atendimentos.

Os objetivos deste atendimento inicial são:

Conforto

Atenção cuidadosa às necessidades e preocupações do sujeito

Conexão e vínculos de suporte

Imediato

Suporte e informação para as necessidades básicas

Como atender essas vítimas de violência recente?

Primeiro passo: estar atento aos próprios sentimentos e reações, fazer um auto questionamento da possibilidade e disponibilidade de prestar atendimentos a pessoas em situação de intenso sofrimento, que podem estar em situações parecidas com a daquele que atende. Por exemplo, um profissional que trabalhe em uma comunidade muito violenta e que tenha presenciado diversas vezes embates dos traficantes com policiais, é comum que ele atend a pessoas que tenham passado pelas mesmas situações que ele. É claro que isso não inviabiliza o atendimento e pelo contrário, pode até ajudá-lo pois pode fazer com que seja mais fácil para o profissional ter uma atitude empática com relação a quem ele esta atendendo. No entanto, em alguns momentos essa vivência pode ser tão parecida que inviabiliza este atendimento.

O que não fazer?

  • Aconselhamento
  • Debriefing
  • Perguntar sobre o que aconteceu , ou pedir que narrem os eventos de uma forma cronológica.
  • Pressionar o indivíduo para que fale sobre seus sentimentos e reações ao evento.
  • Algo que toda pessoa que passe por uma crise irá precisar.

Esse é um ponto muito importante, pois neste primeiro momento a pessoa vitimizada precisa de ajuda prática, por exemplo, citando o caso de Luana, nos primeiros dias não é importante que fiquemos perguntando sobre seus sentimentos, mas sim que a auxiliemos a tomar algumas decisões importantes, por exemplo, como ela irá justificar sua falta em seu emprego? Como ela pode conseguir ajuda para alguém que fique com seus filhos? Quem irá fazer a comida em sua casa?

Após alguns dias a semanas,o paciente irá se beneficiar de um outro tipo de ajuda, que é fundamental em pacientes vitimas de violência, é um trabalho que chamamos de psicoeducativo, no qual o profissional pode explicar para o paciente o que são as reações que ele vem tendo, quais são as reações normais e esperadas, o que ele pode esperar sentir nos próximos dias. Isso traz um forte alívio da culpa, por não estar se sentindo bem, diminui o estranhamento de si mesmo, por começar a compreender o que vem acontecendo consigo mesmo.

Após três semanas Luana vem para uma consulta com uma enfermeira. Nesta consulta ela relata que não consegue dormir, não sai de casa sozinha, fica o tempo todo pensando no que aconteceu e com a certeza de que os assassinos virão em sua casa. Mostra-se bastante ansiosa e hipervigilante também no contato com a enfermeira. A enfermeira pode lhe dizer algo assim: “Luana, essas reações que você está tendo são muito comuns em quem passa por uma situação de violência, isso que você me contou sobre estar irritada, ter a sensação de que tudo aquilo está acontecendo de novo e até isso que você acha que os assassinos virão atrás de você são reações que fazem parte de uma quadro que chamamos de transtorno de estresse pós- traumático, ele é desenvolvido por parte das pessoas que passam por uma situação de violência como você passou. É um quadro conhecido e que tem tratamento. Assim que você iniciar seu tratamento provavelmente estes sintomas irão começar a diminuir de intensidade.

1-b: Transtorno de Estresse Agudo (TEA): (memórias intrusivas e invasivas, sonhos recorrentes, reações dissociativas como flash-back, intenso desconforto ou sintomas físicos marcados secundário a indícios internos ou externos ligados ao evento)

Humor negativo: (inabilidade de experienciar emoções positivas)

Sintomas dissociativos: (alterações da percepção da realidade ou de si próprio, inabilidade de lembrar de fatos importantes ligados ao trauma)

Sintomas evitativos: (esforços para evitar lembrar do trauma, esforços para evitar indícios externos que lembre o trauma)

Sintomas de hiperexcitabilidade:(Alteração do sono, irritabilidade ou agressividade, hipervigilância, problemas de concentração, reações de sobressalto)

Tratamento do TEA

Normalmente inclui uma combinação de tratamento medicamentoso com intervenções psicoterápicas.



2- Tempo de trauma superior a um mês: TEPT

A pessoa que apresente sintomas com tempo de trauma após um mês passa a ser considerada um caso de TEPT, esses sintomas podem ter começado logo após o trauma, então o paciente desenvolveu um quadro de TEA que seguiu para um quadro de TEPT, ou os sintomas podem ter aparecido mais para frente.

O TEPT pode ocorrer em situações em que não haja uma ameaça de vida tão evidente, mas para o indivíduo, de forma subjetiva e pessoal, adquire uma qualidade de aniquilamento. Portanto devemos tomar cuidado com julgamentos do tipo: “Não parece ter sido algo tão ameaçador para provocar uma doença”.

Os fatores de risco mais conhecidos para o desenvolvimento do TEPT são: funcionamento familiar precário, baixo nível de escolaridade, gênero, (as mulheres têm maior probabilidade de desenvolver o transtorno), a gravidade do trauma, suporte social recebido na época do trauma, nível atual de estresse e história psiquiátrica prévia (Kessler, Sonnega et al. 1995).

Em 2013 com a criação do DSM-V os critérios diagnósticos para TEPT foram divididos em quatro clusters de sintomas, que estão exemplificados no caso de Luana:

  1. Exposição ou ameaça de morte, ferimento grave, violação sexual de uma das seguintes formas: exposição direta ao evento traumático, testemunhou o evento, soube do evento através de um familiar ou amigo próximo (evento violento ou acidental) , foi extremamente exposto a muitos detalhes do evento (ex. Bombeiros, policial) Não inclui eventos exposto somente através de mídia eletrônica e TV.
  2. Pelo menos 1 sintoma intrusivo (1/3) : Memória intrusiva e recorrente do trauma, sonhos recorrentes, reações dissociativas tipo flashback.
  3. Pelo menos 1 sintoma de evitação (1/2) : evitação de lembranças, evitação de indícios externos que lembrem o trauma)
  4. Duas ou mais alterações de humor e cognições (2/7) : incapacidade de recordar aspectos do trauma, crenças persistentes e exageradas quanto a si mesmo, os outros ou o mundo, Cognições distorcidas quanto às causas ou às consequências do trauma, estado emocional negativo persistente, redução de interesse e participação em atividades relevantes, sensação de distanciamento e afastamento de outras pessoas, incapacidade persistente de sentir emoções positivas.
  5. Dois ou mais sintomas de excitabilidade aumentada (2/5): irritabilidade ou surtos de raiva, comportamento auto-destrutivo, hipervigilância, resposta de sobressalto exagerada, dificuldade de concentração, dificuldade em conciliar ou manter o sono.
  6. Duração superior a um mês
  7. Sofrimento significativo ou prejuízo funcional
  8. Não é secundário a efeito de substância ou condição médica.

Quadro, evolução e tratamento do TEPT

O quadro do TEPT é extremamente variável. São frequentes as queixas de lembranças intrusivas do trauma, pesadelos, tendência ao isolamento constante e hipervigilância com sobressaltos. As comorbidades são praticamente a regra: depressão, transtornos de ansiedade e até psicose. Devemos ficar atentos para a tendência ao abuso de bebida alcoólica. A evolução, nos casos não tratados, apresenta uma tendência à cronicidade, o que torna o prognóstico mais sombrio. O tratamento, até o momento, não possui acordo em termos de medicamentos. São mais usados os antidepressivos que agem no sistema serotoninérgico (que tem como mediador um neurotransmissor chamado de serotonina). Os antidepressivos mais recentes, com efeito também na noradrenalina, devem ser evitados, pois os pacientes têm uma tendência aos sustos, o que já equivale a uma descarga adrenérgica. Também são evitados os benzodiazepínicos, pois muitos trabalhos acadêmicos comprovam que seu uso cronifica as memórias traumáticas.

A psicoterapia traz os bons resultados quanto ao tratamento. As abordagens mais comuns e mais estudadas no atendimento a pacientes com TEPT são a Psicoterapia Interpessoal (IPT) ,Terapia de Exposição, Terapia Cognitivo Comportamental, -EMDR (Eye-movement Dessentization Reprocessing®) e Psicoterapia Psicodinâmica. Incluem a psicoeducação, psicoterapia individual e a psicoterapia de grupo.

Múltiplos traumas

Herman desenvolveu o termo “TEPT Complexo” para designar condições clinicas apresentadas por indivíduos que sofreram muitos traumas na infância e apresentavam não apenas quadro de TEPT após um evento estressor (Herman, 1997), mas também prejuízo nas áreas afetivas e interpessoal, dificuldades na auto-regulação da ansiedade e de lidar com a raiva, sintomas dissociativos e comportamento evitativo ou agressivo. De acordo com essa autora, os eventos traumáticos na infância são definidos como um tipo específico de trauma relacionado ao TEPT complexo. Quanto mais tipos de abuso um indivíduo apresentar, mais severos serão seus sintomas de TEPT complexo.

No quadro abaixo apresentamos um caso que pode ser diagnosticado com TEPT Complexo:

“Durante o tempo todo que fiquei sobre domínio do agressor, só conseguia pensar que eu merecia estar passando por aquilo. Não morri, e agora não sei o que fazer com a minha vida.” Pac. L., sexo feminino, 37 anos

Esse relato evidencia o significado que essa paciente atribuiu à vivência traumática sofrida durante uma tentativa de estupro e homicídio, da qual conseguiu fugir. L buscou atendimento poucos meses após este evento traumático. Nas primeiras sessões L mostrava-se muito deprimida, com idéias suicidas e uma tentativa de suicídio recente. Parou de trabalhar, não sai mais de casa desacompanhada e não faz mais suas atividades de lazer. Recebe cuidados do marido, porém sente-se muito culpada por estar dando trabalho para ele. Conta que, durante todo o tempo que permaneceu sob domínio do agressor (cerca de uma hora) ficava pensando que teria que passar por aquilo, que merecia ser machucada. Conseguiu reagir e fugir quando pensou em seus filhos, e no medo que teve de deixá-los sozinhos: “foi só isso que me deu forças, por mim eu teria ficado lá, esperando que ele me matasse. Estou viva, mas não sei o que fazer com a minha vida...”

Ao investigar sua história de vida, L conta que sua mãe lhe abandonou no hospital quando ela nasceu, seria encaminhada para adoção, mas uma amiga da mãe a pegou para cuidar. Morou com essa pessoa por um tempo, cuidou dos irmãos mais novos desta mãe adotiva desde os sete anos. Com dez anos, a mãe faleceu e o pai veio buscá-la, foi morar com ele e com a madrasta: “mas lá eu era mais uma empregada do que filha, fiquei três anos fora da escola porque ninguém foi buscar meus documentos na escola antiga.” Aos 17 anos foi morar com uma das irmãs mais velhas e aos 18 engravidou de um namorado que a abandonou, após o nascimento deste filho desenvolveu um quadro de depressão pós-parto. Após alguns anos, conheceu o marido com quem está casada até hoje. Teve muitas crises de depressão ao longo da vida, em nenhuma delas recebeu tratamento ou sequer foi diagnosticada. Apesar de todas essas dificuldades, conseguiu levar sua vida até dois anos atrás, quando teve sua crise depressiva mais grave e agravada por esse evento de agressão. L é uma paciente que passou por experiências traumáticas diversas em sua infância: abandono, negligência, maus-tratos físicos por parte do pai e da madrasta, exigência de que ela cuidasse dos outros irmãos. L não teve atendidas necessidades básicas para seu desenvolvimento, desde alguém que a levasse a escola até alguém que cuidasse dela de uma forma afetiva. Neste caso, a violência recente serve como disparador de diversas vivências muito traumáticas que ocorreram durante toda sua vida, e sobre as quais ela diz nunca ter parado muito para pensar.Foi como se essa agressão tivesse tirado dela suas forças para continuar “lutando contra a vida” (sic).