Nesta aula procuramos abordar alguns aspectos que consideramos importantes no atendimento a vítimas de violência. Destacamos o embasamento teórico para atendimentos a esses pacientes bem como diversos apontamentos para a prática clinica.
Ressaltamos a importância do cuidado inicial no contato com o paciente bem como a importância do desenvolvimento de uma sólida aliança terapêutica. Ainda destacamos os diferentes tipos de reações à vivências traumáticas, bem como suas diferentes intervenções.
Foram descritos os tipos de situações de violência mais comuns.
Por fim, descrevemos os aspectos legais que acreditamos que todo profissional de saúde deva estar ciente para o atendimento a vítimas de violência.
O maior problema para a constatação da violência doméstica é sua apresentação dissimulada. Crianças agredidas são levadas aos prontos-socorros como se tivessem passado por acidentes domésticos. O mesmo ocorre com mulheres espancadas, que pouco procuram ajuda e são surpreendidas pelos vizinhos e familiares com hematomas, muitas vezes no rosto, mas que geralmente protegem maridos (ou filhos que também são agressores comuns), perpetuando o ciclo da violência.
Referências Bibliográficas
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______. Ministério da Saúde. Norma técnica de prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes. 3. ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2010.
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No campo de ação da atenção primária, enumeramos alguns aspectos da violência que podem alertar o profissional: além dos vários tipos de agressão que envolvem a violência urbana (assaltos, sequestros-relâmpago que atualmente ocorrem em qualquer classe social, moradia em lugar violento), temos eventos que durante muito tempo foram pouco observados pela saúde: assédio moral (bullying, mais especificamente entre jovens), assédio sexual e especificamente a violência sexual.
Cada um desses aspectos pode ser observado diretamente (quando familiares ou os próprios usuários acometidos contam) ou indiretamente. Como a questão do impacto da violência sobre o psiquismo é um tema tabu, o profissional do PSF deve estar atento para alguns sinais indiretos:
Implicações para a prática clínica
O profissional deve ter bastante cuidado no acolhimento inicial: pacientes encontram-se fragilizados, desorganizados e com o senso de confiança muito prejudicado.
A relação estabelecida com o paciente deve ser de suporte e empática.
Profissional de saúde pode ser visto como uma figura de apego temporária, com quem paciente restabelecerá a capacidade de confiança no outro e poderá dividir sua história e seus sentimentos.
Como abordar o evento traumático ?
Esta deve ser sempre uma questão a ser abordada com muita cautela, pois muitos pacientes não conseguem falar sobre o ocorrido, outros falam repetidamente sobre o evento, mas trata-se de um falar que pode fazer com que ele se sinta mal e muito exposto, por isso é fundamental que o profissional possa ir conversando com o paciente e fazendo com que ele se perceba, suas reações, seus incômodos enquanto fala, para que possa ter a liberdade de interromper um assunto que pode estar sendo muito doloroso para ele.
Um exemplo de como abordaríamos Luana numa primeira consulta:
“Luana, eu sei pelo seu prontuário que você passou por uma situação de violência, gostaria de saber como isso vem te afetando e como te afetou. Peço que só me conte aquilo que você se sentir á vontade em falar e caso eu faça alguma pergunta ou algum comentário que te incomode peço que você me diga que está incomodada ou que não quer responder, pode ser?”
Cuidando de quem cuida
Devido aos sintomas de desconfiança e isolamento, os pacientes com TEPT podem apresentar dificuldade em estabelecer vínculos de confiança, por isso o estabelecimento de uma aliança terapêutica e de um relacionamento de confiança pode ser um desafio. Tal dificuldade pode levar o profissional a vivenciar sentimentos de solidão e inutilidade.
Por outro lado, são pacientes que, por estarem muito fragilizados, podem projetar no profissional a figura do salvador, que poderá ajudá-lo a sair da crise. Essa projeção inicial pode facilitar o desenvolvimento de uma relação de confiança e de um vínculo com o paciente, no entanto deve ser questionada, pois é necessário que, com o passar do tempo o paciente consiga romper o ciclo de idealização do profissional e desvalorização de si, para que possa reconhecer em si mesmo recursos e sinais para sair da crise em que se encontra.
É comum que o terapeuta vivencie sentimentos de culpa por não ter passado pela situação de agressão que seus pacientes vivenciaram.
A traumatização vicária, descrita como a experiência, por parte de profissionais que atendem vitimas de traumas, de vivenciar reações psicológicas intensas e dolorosas, estados de medo e desesperança intensos. O contato freqüente do profissional com os relatos traumáticos de seus pacientes pode fazer com que desenvolvam um profundo senso de desesperança frente ao mundo, além de raiva intensa dos agressores. Esse senso de desesperança e impotência pode levar o profissional a perder a crença na sua capacidade de ajudar seu paciente, bem como não conseguir perceber os potencias destes para sair da crise.
Outro fenômeno comum é a traumatização secundária, definida como uma súbita reação por parte do terapeuta que esta em contato com vitimas de trauma.Tal processo foi descrito por Figley.
Por fim, é importante ressaltar a importância do trabalho em equipe no atendimento a esses pacientes, esta funciona como importante suporte e espaço para que o terapeuta possa elaborar os aspectos mais dolorosos desencadeados em seus atendimentos.
Aspectos Legais
É importante comentar algumas das leis que vieram proteger as mulheres em situações de violência doméstica e sexual, facilitando e norteando os serviços de saúde em sua atuação preventiva e terapêutica não só na área médica, mas também nos âmbitos social, psíquico e de exercício de cidadania.
Algumas leis, apesar de já existirem, há muitos anos continuam sendo “esquecidas” ou mal interpretadas, insistindo dessa maneira em negar os devidos direitos às mulheres. Entre os aspectos bioéticos que trazem dúvidas aos profissionais de saúde, temos os relacionados às situações de aborto previsto em lei, à obrigação dos serviços de saúde em oferecer os serviços de direito às mulheres, ao compromisso dos órgãos de saúde em desenvolver esses serviços, aos limites da objeção de consciência alegadas pelos profissionais de saúde, às obrigações e limites de denúncias e notificações compulsórias, aos consentimentos esclarecidos e informados e a algumas leis que devem ser conhecidas pelos profissionais de saúde para os devidos encaminhamentos, esclarecimentos e até aconselhamentos às vitimas de violência num sentido amplo, particularmente às mulheres.
Lei do Aborto
Iniciaremos com o Decreto-Lei no 2848 do Código Penal Brasileiro, datada de 1940, que no seu artigo 128 diz:
Essa lei ainda não é oferecida universalmente às pacientes que dela necessitam. Na realidade, foi no final dos anos 1980 quando surgiram as primeiras leis regulamentando, no Rio de Janeiro e em São Paulo, a obrigação de os hospitais municipais oferecerem a interrupção da gestação nas situações de juricidade existentes no Código Penal Brasileiro. Apesar disso, já são 22 anos de luta e ainda não temos esse serviço universalizado, como é proposta do nosso Sistema Único de Saúde.
Vale lembrar que essas dificuldades de acesso aos seus direitos , nos casos de estupro, levam essas mulheres a procurar situações de risco para realizar seus abortos, resultando numa enorme perda de vidas desnecessárias.
Objeção de consciência
O Novo Código de Ética Médica, aprovado pela Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) 1.931/2009 em 17 de setembro de 2009 e publicado no Diário Oficial da União (DOU) em 24 de setembro de 2009, no Capítulo II, relativo aos “Direitos dos Médicos”, diz que “é direito do médico [...] recusar-se a realizar atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência (artigo IX)”. Esse artigo permite aos médicos eximirem-se de determinados atos desde que sejam contra seus princípios morais e religiosos, embora amparados pela lei. Dessa maneira, pode um médico deixar de realizar um aborto, mesmo que seja legal, se tal ato for contra seus princípios. No entanto, deve esse médico, obrigatoriamente, orientar e encaminhar a paciente a outro que lhe ofereça o atendimento de direito, facilitando seu acesso em tempo hábil e oportuno para a realização do procedimento. Tem sido comum alguns colegas eximirem-se de atender e orientar essas mulheres, alegando que não concordam com suas opções. Outro aspecto é que, nos casos de risco de vida à gestante, não é reconhecido o direito de objeção de consciência, se não houver outro profissional treinado para a realização do procedimento em questão.
No que se refere à contracepção de emergência, o Novo Código de Ética Médica é bem claro quando não aceita justificativa para objeção de consciência, uma vez que essa medicação não é abortiva.
Crimes contra a dignidade sexual
No final de 2009, houve uma importante mudança nas leis que definem os crimes sexuais. A Lei no 12.015, de 7 de agosto de 2009, alterou o Decreto-Lei no 2848 de 7 de dezembro de 1940 e dispõe sobre os crimes hediondos nos termos do inciso XLIII do artigo 5o da Constituição Federal, revogando a Lei no 2252 de 1o de julho de 1954, que tratava de corrupção de menores.
O Título VI da Parte Especial do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, passa a vigorar com as seguintes alterações:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del2848.htm#tituloviNa prática, esta lei muda a definição de estupro conforme o Artigo 213 : “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. Essa definição então suprime a figura do atentado violento ao pudor, considerando qualquer forma de agressão sexual como estupro (coito vaginal, anal, oral, interfêmures, manipulações etc.). Também define estupro de vulnerável quando essa forma de violência é aplicada a incapazes e menores de 18 e maiores de 14 anos. Nas situações abaixo de 14 anos, mesmo que consentida, a relação sexual é considerada estupro presumido de vulnerável, não necessitando haver violência nem constrangimento para esse ato. Existe um mecanismo de acumulação de penas para essas situações.
Outro aspecto importante desta lei é que, embora respeite o direito à representação da ação judicial contra o agressor em maiores de 18 anos, em situações de estupro de vulnerável, a ação penal é incondicionada, ou seja, é aberta automaticamente mesmo que contra a vontade dos responsáveis legais.
Outras situações são consideradas nesta lei, como violação sexual mediante fraude, assédio sexual, exploração sexual, tráfico internacional de pessoas, rufianismo (exploração sexual por terceiros), exploração de menores, entre outras. Também aqui houve um processo cumulativo de penas, conforme as situações vão se configurando. Trata-se, pois, de um avanço considerável na lei que protege os direitos sexuais e reprodutivos das pessoas, particularmente das mulheres.
Notificação compulsória
Em casos de suspeita ou confirmação de violência contra crianças e adolescentes, a notificação deve ser obrigatória e dirigida aos Conselhos Tutelares e autoridades competentes (Delegacias de Proteção da Criança e do Adolescente e Ministério Público da localidade), de acordo com o Artigo 13 da Lei no 8069/1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente. Esta ficha (anexo IV) atende ao Decreto-Lei no 5.099 de 03/06/2004, o qual regulamenta a Lei no 10.778/2003, que institui o serviço de notificação compulsória de violência contra a mulher, e o Artigo 19 da Lei no 10.741/2003, que prevê que os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra idosos são de notificação obrigatória.
Todo o parágrafo acima faz parte do cabeçalho da ficha de notificação compulsória, que de acordo com as leis mencionadas, devem ser realizadas quando qualquer serviço de saúde atende um(a) paciente em situação de vulnerabilidade. É importante notar que, nas situações contra crianças e adolescentes, além da notificação compulsória, deve o serviço comunicar oficialmente o Conselho Tutelar e/ou a Delegacia de Proteção à Criança e Adolescente. No caso de violência contra o idoso, sugere-se que o Ministério Público seja acionado, uma vez que não existe um órgão oficial prevendo essa proteção aos idosos na maioria dos municípios (anexo II).
Lei Maria da Penha
Em 7 de agosto de 2006, o presidente do Brasil sancionou a Lei no 11.340, conhecida como “Lei Maria da Penha”. Entre as várias mudanças promovidas por essa lei, está o aumento no rigor das punições das agressões contra a mulher quando ocorridas no âmbito doméstico ou familiar. Essa lei foi criada para proteger os direitos da mulher, além de impedir que os homens assassinem ou batam nas suas esposas. A lei alterou o Código Penal Brasileiro e possibilitou que agressores de mulheres no âmbito doméstico ou familiar sejam presos em flagrante ou tenham sua prisão preventiva decretada. Outro aspecto importante é que esses agressores também não poderão mais ser punidos com penas alternativas, como pagamento de cestas básicas. A legislação também aumenta o tempo máximo de detenção de um para três anos e ainda prevê medidas que vão desde a saída do agressor do domicílio à proibição de sua aproximação da mulher agredida.