Aspectos práticos

Registro Clínico Orientado por Problemas (RCOP)

O registro da história clínica e de vida de cada pessoa e/ou família, materializado na forma de prontuários impressos ou eletrônicos, constitui memória valiosa para o profissional de saúde, além de instrumento de apoio à decisão clínica e à qualidade do cuidado prestado. Os registros ajudam a garantir a longitudinalidade e coordenação do cuidado, auxiliam na comunicação e tomada de decisão em equipe e permitem um arquivo de dados-base das pessoas e famílias em seguimento, fornecendo eventualmente também dados para investigação científica ou prova para diligências legais (RAMOS, 2008).

Os registros clínicos sofreram uma evolução notável desde a década de 1960. Nesta seção nos aprofundaremos numa forma de registro que consideramos bastante efetiva para a prática clínica em APS, o “Registro Clínico Orientado por Problemas” (RCOP), uma adaptação do “Registro Médico Orientado por Problemas” (originalmente criado para o ambiente hospitalar), e seu componente denominado “SOAP” (Subjetivo, Objetivo, Avaliação, Plano), divulgados em 1968-69 a partir dos trabalhos de Lawrence Weed (RAMOS, 2008).

O RCOP possui três áreas fundamentais para registro das informações clínicas: a Base de dados da pessoa, a Lista de problemas, e as Notas de evolução clínica (notas SOAP) (RAMOS, 2008). Podemos ainda acrescentar um quarto componente, as Fichas de acompanhamento, que resumem os dados complementares mais relevantes e sua evolução (CANTALE, 2003). Se bem utilizado, é um método eficiente para a recuperação rápida das informações clínicas de uma pessoa, garantindo continuidade articulada de cuidados em equipe dentro da APS. Ao utilizá-lo, é importante termos consciência e registrarmos as informações como se elas não fossem para nós mesmos, mas sim de uma maneira compreensível para todos os membros da equipe (RAMOS, 2008), e, de maneira ideal, para a própria pessoa que está sendo cuidada. A seguir, detalharemos cada componente do RCOP.

O que é um “problema” clínico?

Antes de tudo, é necessário definirmos o que estamos chamando de “problema” dentro do RCOP. Das muitas definições existentes, apresentaremos aqui duas:

1) a definição do próprio Weed (1966, apud CANTALE, 2003): “Um Problema Clínico é tudo aquilo que requeira um diagnóstico e manejo posterior, ou aquilo que interfira com a qualidade de vida, de acordo com a percepção da própria pessoa”;

2) a de Rakel (1995, apud CANTALE, 2003), Médico de Família que primeiro adaptou o RCOP para o uso em consultório de APS: “Problema Clínico é qualquer problema fisiológico, psicológico ou social que seja de interesse do profissional e/ou da pessoa que está sendo cuidada”.

Dentro das duas perspectivas, muitos problemas de saúde são, de fato, diagnósticos classificáveis por sistemas de informação oficiais (como o CID 10, por exemplo), mas em APS, muitos “problemas” são constituídos por outras condições, tais como sintomas, queixas ou incapacidades (WONCA, 2009), que não necessariamente caracterizam-se como uma doença classificável pelo CID 10. Assim, são várias as situações que podem ser enquadradas como “problemas clínicos” no RCOP e que podem necessitar de classificação. Desse modo, a WONCA criou a Classificação Internacional para Atenção Primária – CIAP-2, que pode ser utilizada por profissionais de todas as áreas, incluindo os da ESF. A CIAP permite, além dos “problemas”, classificar os “motivos da consulta” e o “processo de cuidado”. Pela CIAP, o problema de saúde poderá ser classificado com relação ao seu estágio, à certeza que o profissional tem do diagnóstico e à sua gravidade (WONCA, 2009). Informações completas sobre a CIAP 2 podem ser encontradas no material de leitura complementar. É importante destacar que o sistema de registro de consulta do E-SUS permite a classificação pelo CID e CIAP, além de ser estruturado no modelo SOAP.

No Quadro 1 estão listadas categorias de potenciais problemas que poderiam compor uma “lista de problemas” dentro de um RCOP (CANTALE, 2003).

Categoria

Problema

Diagnóstico/ enfermidade

asma, diabetes

Deficiência, incapacidade

paralisia cerebral, hemiparesia braquial direita

Sintoma

dor torácica, náusea

Sinal

medida da pressão arterial elevada

Exame complementar anormal

glicemia de jejum alterada

Alergia, efeito adverso de um fármaco

alergia a penicilina, tosse por inibidor da enzima de conversão da angiotensina (ECA)

Intervenção cirúrgica

apendicectomia

Síndrome

síndrome de Menière, síndrome do túnel do carpo

Efeitos de traumatismos

hematoma, fratura

Fator de risco

risco ocupacional, polipose familiar, sedentarismo, tabagismo

Transtorno psicológico ou pisquiátrico

ansiedade, depressão, crise de pânico

Alteração da dinâmica familiar, social ou laboral

"ninho vazio", recém-nascido, desemprego, violência

Cada “problema” ainda pode ser classificado por diferentes critérios: tempo de ocorrência (“novo” ou “conhecido”), duração (“agudo” ou “crônico”), situação (“ativo” ou “resolvido”), etc. (CANTALE, 2003).

Algumas condições não se configuram ou ainda não se configuraram como “problemas”, e não deveriam aparecer oficialmente na “lista de problemas”, a qual deve ter o máximo de precisão possível (CANTALE, 2003). Alguns exemplos:

  • Termos vagos ou pouco objetivos: hemopatia, processo respiratório, ou

  • Condições ainda sob suspeita ou “a esclarecer”: hipotireoidismo em investigação, por exemplo.

Estrutura de um RCOP

Nesta seção apresentaremos e definiremos cada componente de um RCOP (Base de dados da pessoa, Lista de problemas, Notas de evolução “SOAP” e Fichas de acompanhamento) (CANTALE, 2003).

a. Base de dados da pessoa

A base de dados da pessoa será constituída fundamentalmente pelas informações e dados obtidos na história clínica e de vida, no exame físico e nos resultados de exames complementares, registrados geralmente na primeira, ou nas primeiras consultas, ou “caso novo” daquela pessoa (CANTALE, 2003). São parte da base de dados os antecedentes pessoais e familiares, o problema de saúde atual e as informações de saúde prévias daquela pessoa (trazidas por ela mesma ou enviada por outros serviços). O tipo, o formato, o grau de profundidade e a quantidade de dados e informações, que constituirão a base de dados da pessoa, serão definidos pela própria equipe da ESF, que poderá elaborar um formulário-padrão para a obtenção dessas informações.

b. Lista de problemas

A lista de problemas constitui a primeira parte ou “folha de rosto” de um prontuário baseado no RCOP, devendo vir logo após a identificação da pessoa (CANTALE, 2003). A lista é elaborada a partir da base de dados da pessoa e das notas de evolução subsequentes, sendo, portanto, dinâmica. É um resumo útil dos problemas de saúde da pessoa, os quais devem ser enumerados pela ordem de aparecimento ao longo do tempo (com a data de início e da anotação, ao lado do problema), o que permite identificá-los sem a necessidade de ler cada folha de evolução (CANTALE, 2003). A Figura 3 traz um exemplo de “lista de problemas”, nesse caso separando condições agudas de crônicas, e deixando campos para observações importantes (BRASIL, 2003).

c. Notas de evolução “SOAP”

Notas de evolução clínica claras e bem organizadas fazem parte da elaboração uma boa história clínica, continuada ao longo do tempo de ocorrência de um problema de saúde. A estrutura das notas de evolução no RCOP é formada por quatro partes, conhecidas resumidamente como SOAP – que corresponde a um acrômio (originalmente em inglês) para Subjetivo, Objetivo, Avaliação e Plano (CANTALE, 2003) –, detalhadas a seguir.

Subjetivo (S)

Nessa parte se anotam as informações recolhidas na entrevista clínica sobre o motivo da consulta ou o problema de saúde em questão. Inclui as impressões subjetivas do profissional de saúde e as expressadas pela pessoa que está sendo cuidada (CANTALE, 2003). Se tivermos como referencial o “método clínico centrado na pessoa” (MCCP), é nessa seção que exploramos a “experiência da doença” ou a “experiência do problema” vivida pela própria pessoa, componente fundamental do MCCP (STEWART, 2010).

Objetivo (O)

Nessa parte se anotam os dados positivos (e negativos que se configurarem importantes) do exame físico e dos exames complementares, incluindo os laboratoriais disponíveis (CANTALE, 2003).

Avaliação (A)

Após a coleta e o registro organizado dos dados e informações subjetivas (S) e objetivas (O), o profissional de saúde faz uma avaliação (A) mais precisa em relação ao problema, queixa ou necessidade de saúde, definindo-o e denominando-o (CANTALE, 2003). Nessa parte se poderá utilizar, se for o caso, algum sistema de classificação de problemas clínicos, por exemplo, o CIAP (WONCA, 2009).

Plano (P)

A parte final da nota de evolução SOAP é o plano (P) de cuidados ou condutas que serão tomados em relação ao problema ou necessidade avaliada. De maneira geral, podem existir quatro tipos principais de planos (CANTALE, 2003):
1) Planos Diagnósticos: nos quais se planejam as provas diagnósticas necessárias para elucidação do problema, se for o caso;
2) Planos Terapêuticos: nos quais se registram as indicações terapêuticas planejadas para a resolução ou manejo do problema da pessoa: medicamentos, dietas, mudanças de hábitos, entre outras;
3) Planos de Seguimento: nos quais se expõem as estratégias de seguimento longitudinal e continuado da pessoa e do problema em questão;
4) Planos de Educação em Saúde: nos quais se registram brevemente as informações e orientações apresentadas e negociadas com a pessoa, em relação ao problema em questão.

O Quadro 3 traz um exemplo de nota de evolução SOAP (CANTALE, 2003).

Subjetivo (S)
Motivo da Consulta – Pessoa vem para controle do diabetes, o qual trata desde os cinco anos de idade, sem controle adequado da glicemia.
Impressão do profissional – “Pessoa evita o contato visual”.
Expressões da pessoa – “Estou cansada de aplicar a insulina diariamente”.

Objetivo (O)
IMC (Índice de Massa Corporal) – 29
Pressão Arterial – 140/90
Exame da pele – Maceração interdigital nos pés.

Avaliação (A)
Diabetes insulinodependente
Sobrepeso
Medida de pressão arterial elevada
Micose interdigital

Plano (P)
Diagnóstico: glicemia de jejum, creatinina, microalbuminúria, Hb glicada, colesterol total, HDL, LDL, triglicérides.
Terapêutico: diabetes e sobrepeso: a) reeducação alimentar; b) caminhadas diárias; Micose: a) lavagem e secagem diária dos pés de forma adequada; b) antimicótico local.
Seguimento: diabetes: monitoramento ambulatorial da glicemia às 8h, 12h, 16h e 20h por uma semana; Sobrepeso: monitoramento semanal do peso; Pressão arterial elevada: curva pressórica em dias e horários diferentes por três semanas.
Educação em Saúde: conversado sobre o diabetes e suas complicações, sobre o risco da micose nos pés para as pessoas diabéticas e sobre a importância da aplicação da insulina e do controle da dieta.

d. Fichas de acompanhamento

As fichas de acompanhamento são formulários separados da lista de problemas e das notas clínicas, nas quais se pode registrar a evolução dos resultados dos exames físicos e complementares, dos dados de crescimento e desenvolvimento, hábitos de vida, exames preventivos, medicações prescritas, entre diversas outras possibilidades. Essas fichas geralmente ficam localizadas na primeira ou última parte dos prontuários, permitindo a visualização rápida da evolução dos dados, sem a necessidade de se revisar todo o conteúdo (CANTALE, 2003).

A abordagem familiar também deve ser de domínio do Médico de Família e Comunidade. Por hora focaremos no registro e no arquivamento das informações no prontuário familiar.